Quem nunca se entediou com a rotina, sonhou em jogar tudo para o alto e sair por aí saboreando a liberdade, o descompromisso e as delícias da vida? Com tantos afazeres cotidianos, horários a cumprir, contas a pagar, trabalho a entregar, nada mais compreensível que o desejo de escapulir, de vez em quando, para recantos mais gratificantes. Mas, apesar da conotação negativa que atribuímos à rotina, ela não precisa ser necessariamente massacrante, repetitiva ou enfadonha. Ao contrário, exerce até uma função importante na organização de nossa vida. “A rotina atua como um eixo que nos estrutura. É ela quem dá a dimensão de nossas ações e aponta possibilidades de transformação”, revela a psicanalista Maria Helena Saleme, do Instituto Sedes Sapientiae, de São Paulo. Prisão ou oportunidade de crescimento pessoal? A escolha só depende de você. Mesmo que tudo – o chefe, a família, o horário apertado, a batalha da sobrevivência – pareça conspirar contra seus sonhos, os especialistas garantem que a rotina pode ser vivida com criatividade. “O que cria a sensação de que os dias são sempre iguais e tediosos não é a repetição que vem de fora, mas a rotina interior. É o medo de ousar e a tendência a olhar as coisas usando sempre a mesma lente”, ensina Maria Helena. Segundo a psicanalista, a partir do conhecido, do usual, dos parâmetros repetidos que a rotina proporciona, cada um pode extrair indicações exatas sobre o que precisa ser mudado e os próximos passos a seguir. “Ela é como uma roda-gigante, que faz sempre o mesmo movimento, mas nos permite ver o parque do alto, de lado, de vários prismas”, compara. Quando se trata da saúde do corpo e das emoções, a rotina também tem uma contribuição a dar. Há muitos benefícios em acordar todos os dias à mesma hora ou almoçar regularmente. “A repetição periódica de determinados ciclos mantém o organismo sincronizado com o ambiente. Estímulos externos como dia/noite e horários de trabalho/repouso atuam sobre o relógio biológico, organizando os ritmos do organismo”, explica o professor Luiz Menna-Barreto, coordenador do Grupo Multidisciplinar de Desenvolvimento e Ritmos Biológicos da USP. Basta ver o que acontece no início do horário de verão, em casos de viagens com mudanças bruscas de fuso horário ou quando os turnos de trabalho são muito variáveis. Alterações de humor ou do padrão de sono e hipertensão são algumas das reações que traduzem a dificuldade do relógio biológico em se adaptar às mudanças. Por essa mesma razão, estabelecer uma rotina para bebês e crianças, por exemplo, é muito saudável. Embora não haja estudos conclusivos sobre diferenças no desenvolvimento de crianças que cresceram em ambientes mais ou menos estruturados, sabe-se que a rotina auxilia o organismo a se adaptar às atividades da família e da escola e, mais do que nos adultos, regula o relógio biológico. Em termos psicológicos, funciona como um organizador externo para o mundo interior da criança. “Um ritmo cotidiano bem marcado proporciona equilíbrio e ajuda a criança a descobrir seu jeito próprio de estar no mundo”, afirma a psicanalista. Depende de cada um Os fatores que levam uma pessoa a ser mais ou menos adaptável a horários e atividades que se repetem ciclicamente são tão complexos e múltiplos que, de acordo com Menna-Barreto, as pesquisas a esse respeito não são muito convincentes. Aos olhos da medicina antroposófica (sistematizada pelo médico e filósofo austríaco Rudolf Steiner), porém, o tom dessa relação é ditado pela constituição de cada um. Nessa linha de pensamento, pessoas que possuem uma constituição neurossensorial mais ativa e são mais mentais, por exemplo, costumam se sentir tolhidas pelo peso da rotina. “Internamente, esses indivíduos já são muito estruturados e organizados. A rotina externa traz mais ingredientes dessa mesma natureza, causando uma sobrecarga”, afirma o médico Samir Rahme, presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Antroposófica. Em contrapartida, explica ele, os que possuem uma constituição predominantemente metabólica e são mais voltados à ação tendem a se beneficiar e se adaptar melhor à rotina porque possuem uma dificuldade natural para se organizar. A forma como cada pessoa vivencia seu cotidiano levou a medicina antroposófica a estabelecer três tipos de classificação, como explica Rahme. 1. Rotina é tudo que vem do exterior e deve ser cumprido, como o trabalho. 2. O ritmo está relacionado à rotina interna, a forma como cada um se organiza com base nos compromissos e nas demandas da rotina: o que faz para si e os relacionamentos sociais, profissionais e familiares que estabelece. 3. Os rituais se referem aos pequenos tesouros – atividades especiais que fazemos de corpo e alma, que garantem nossa felicidade e bem-estar. São as situações que nos permitem entrar em contato com nosso melhor lado. “É essa relação ritualística conosco e com o mundo que estamos perdendo hoje em dia. Por isso, a tendência é que a rotina seja percebida apenas como massacrante. Ir à academia pode ser uma rotina ou um ritual. Tudo depende da intenção. A rotina sempre existirá. O segredo é vivê-la criativamente, com a liberdade de ousar”, receita o médico. Ou, como sintetiza a psicanalista Maria Helena Saleme, “a rotina é um carro que nos conduz. Podemos escolher entre ser passageiros ou motoristas”.
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